A NOITE EM QUE O “PILOTO” QUASE PARTIA PARA A ETERNIDADE
A noite tinha acabado de acender as suas lâmpadas tímidas. Eram 20h00 e alguns minutos, do dia 3 do último mês do ano, quando caminhava numa das ruas do Cassequel, em Luanda, seguindo passos largos, rumo ao alcance do objectivo que me levara naquele perímetro do meu país.
Ia eu no meu passo habitual, a sentir o murmúrio do bairro, quando dois “pilotos” surgiram, rasgando a rua como se a vida fosse uma corrida improvisada. O meu instinto, disse-me: sai daí já e eu saí.
Realidades paralelas cruzaram-se num segundo. Os jovens vinham a disputar a via como se estivessem no motocross dos tempos do Vuti, quando o nome dele ainda arrancava aplausos de miúdos e dos mais velhos.
Voltando à cena: segundos depois, ouvi um barulho. Poeira levantada. Um dos “pilotos” estendido no chão. O outro quase lhe passou por cima da cabeça, por um fio mesmo e nesse fio, ficou pendurada a vida do rapaz.
Pararam. Ouvia-se gritos, reclamações e a típica assembleia do bairro montada em tempo recorde era visível, maioritariamente jovens.
-É para ter juízo!
-Brincam à toa!
-Hoje tiveste muita sorte, wy!
Eram vozes carregadas de susto e de raiva, porque todos ali sabem que as ruas também têm crianças, as que brincam até tarde, as que não têm culpa de nada, mas pagam caro pela irresponsabilidade dos adultos.
O jovem, com uns 25 ou 26 anos no máximo, gemia baixinho: coxeava, torcia o rosto, tentava disfarçar a queda com aquele orgulho típico de quem sabe que errou, mas não quer assumir na frente da multidão. A motorizada? Morta. Nem um suspiro, por mais que ele tentasse fazê-la pegar, o motor só respondia com silêncio.
Alguns vizinhos aproximaram-se, empurrados por boa vontade e preocupação:
-Vai ao hospital, jovem!
-Evitem conduzir assim!
-Vocês não são de ferro!
Fiquei a observar por instantes, mas o ambiente não era ideal para filmagens nem fotografias, a segurança falava mais alto, e às vezes o melhor registo é mesmo o que guardamos na memória.

Deixei-os ali, naquela esquina, com a esperança de que a lição lhes tivesse entrado pelo corpo adentro, porque a vida tem normas que devem ser obedecidas e quem decide ignorá-las, mais tarde ou mais cedo, paga. Às vezes com metal partido, outras vezes com sangue e também com silêncio eterno, em muitas ocasiões.
A verdade é esta: muitos motoqueiros, em Luanda e noutras paragens de Angola, conduzem como se a estrada fosse palco de espectáculo: observamos rodas no ar, mãos fora do volante, um pé só a guiar a máquina, manobras arriscadas enquanto o público improvisado aplaude, como se ser imprudente fosse talento e embalados pelo brilho momentâneo desses aplausos, acreditam que o dia está ganho, mas o dia, meus irmãos, para muitos perde-se na maca.
Não se trata apenas de motorizadas partidas. Trata-se de vidas cortadas, famílias em luto, estradas manchadas, estatísticas que crescem como ervas daninhas. Trata-se de um país jovem que, a cada acidente evitável, perde uma força motriz, alguém que podia estar a construir, a amar, a ensinar, a transformar.
A vida é curta demais para a desperdiçarmos em manobras sem sentido.
Se querem velocidade, procuram-na no desporto. Se querem competir, façam-no em pistas próprias, com capacete preso, ficha médica feita e regras claras. Há espaço para tudo, menos para brincar com a própria existência.
Em fim, deixemos um legado que inspire quem vem depois, um legado que se pareça mais com consciência do que com imprudência e espero que a juventude angolana continue a sonhar alto, mas com os pés firmes na estrada certa, porque a vida, essa sim, não tem reposição.
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