SENTADO NO ALTO DA MONTANHA PARA OUVIR O DISCURSO DO MESTRE

Há momentos em que o ruído do mundo exige silêncio e  para ouvir a voz da consciência colectiva, é preciso subir, não apenas em altitude, mas em espírito. Foi assim que, num amanhecer de inquietações, decidi alpinhar até ao cume da montanha para escutar o discurso do mestre.

Os dias passaram-se. Histórias foram contadas, livros lidos, discursos ouvidos e mensagens partilhadas, cada uma com o seu foco: umas com incentivos, outras com princípios que precipitam a queda da andorinha.

Depois de longa reflexão, decidi subir até ao alto da montanha. Lá, sentei-me sobre uma pedra, com um kissangua ao lado. O dia principiava. O sol, tímido, hesitava em abrir caminho entre as nuvens, mas eu estava preparado até levava tendas.

A boa música do Disbunda tocava baixinho, eu mexia a cabeça e os pés, observando lá de cima a movimentação lá em baixo, atento à hora do discurso.

Recebi um telefonema de um amigo que me alertou: “Escuta com atenção o Discurso do mestre, nele residem lições que a memória guardará por longos anos.”
Fiquei curioso e decidi ouvir cada detalhe, na esperança de colher mais uma lição.

O discurso

“Minhas senhoras e meus senhores, aqui presentes e ausentes nesta magna sala da vida, digníssimos cidadãos desta vasta sociedade: hoje, propomo-nos transformar o meio num lugar propício para viver com dignidade.
Acreditamos que somos capazes de atingir os nossos sonhos, se cada um fizer a sua parte num ambiente onde o bem comum seja, de facto, uma marca.”

Um voo rasgou o céu e, por instantes, distraiu-me. Até pensei em pedir indemnização, mas logo reflecti: deixe lá,  a sociedade não pode parar, enquanto uns falam, outros trabalham pelo bem comum.

“Para alcançar o sucesso,” continuou o orador, “nem sempre importam a área onde estamos, o bairro onde nascemos ou a posição social da família.
O segredo está em saber aproveitar as oportunidades que surgem ao longo do caminho.

Estes factores influenciam, mas não determinam o desfecho.
Aproveitemos todos os momentos que conduzem ao progresso, pois, quando os perdermos e olharmos para trás, poderá ser tarde.”

Cada frase aumentava a minha atenção. O sol nascia com força, mas permaneci firme, lá do alto, a ouvir o discurso.

“O pódio exige respeito pelo processo. Os métodos para atingir o apogeu não são iguais para todos, cada um adopta os que considera mais eficazes.
Escolhamos sempre aqueles que nos concedam paz interior.

Se observarmos a história de homens e mulheres de sucesso, veremos que a maioria teve de lutar e sem dúvidas, inúmeros nãos e palavras desmotivadoras receberam.

O segredo? Avançarm, porque sabiam onde queriam chegar.

O discurso soava como música antiga, dessas que o coração entende.

“Os nossos valores, disciplina, integridade, honestidade, pontualidade, escuta activa, espírito de ajuda, respeito pelo bem comum, organização e temor a Deus,  são molas essenciais para vencermos.

Não permitamos que o individual suplante o colectivo.

Quem pensa no bem-estar comum cultiva valores no coração, carrega amor, edifica harmonia e cria condições para que o outro aprenda a pescar.”

Fez-se uma pausa. Eu sorria, embalado pelas palavras.

“Entre o eu e o nós, que prevaleça sempre o nós. Quem caminha nesta direcção deseja também o sucesso dos outros. Mesmo quando decide a sós, quem coloca o bem comum no centro das acções compreende a dimensão do que faz.”

Lições do mestre

Do alto, ouvi palmas e assobios. Levantei-me um pouco para esticar as pernas, bebi um copo de água e voltei a sentar-me.

“Não esperemos ser cobrados por resultados,” prosseguiu a voz.
“Demos o nosso melhor, pois a vida é um campo de provas invisíveis.
Pode parecer que ninguém nos vê, mas há sempre alguém a anotar os nossos passos com o olhar atento de quem, um dia, decidirá o nosso destino.
Trabalhemos com mais do que a fome do salário, com sede de crescimento e vontade de aprender.

O trabalho é uma aula viva: os livros transformam-se em prática e cada erro é um mestre disfarçado.”

O vento soprou forte, mas a  mensagem chegava perfeitamente.

“Não sejamos o Caim desta geração, que ostenta sorrisos falsos e palavras doces, mas oculta a lâmina da inveja.

Sejamos o Abel do novo tempo: aquele que insiste em fazer o bem, ergue pontes em vez de muros e celebra a vitória alheia como se fosse a sua.”

Por um instante, fez-se silêncio.

Pensei: o microfone ficou sem carga?

Mas logo ouvia-se vozes do fundo: “Continue, não chore!” e o aplauso voltou com força.

“Na nossa cultura africana, agradecer é honrar os mais velhos, reconhecer quem abriu caminho e manter viva a memória da história.
Muitos cruzam o nosso percurso, recebem apoio e permanecem calados, sem sequer dizer um ‘obrigado’.

Deixo, pois, uma saudação sentida aos que se esforçam para tornar este território num lugar melhor. Estes são os nossos heróis, não usam capa nem voam sobre cidades, mas seguram o mundo com as mãos e provam que a esperança é possível.”

O chamado à esperança

“Aos que preservam os nossos valores, aos que acreditam que o amanhã se constrói com as mãos firmes de hoje, a minha profunda gratidão e deixo uma última reflexão:

O ódio aprisiona, o amor liberta.

É este amor que precisamos para reconstruir o tecido rasgado da sociedade.
O amor é força germinadora, semente que não se deixa sufocar pelo joio da inveja.

É no gesto simples de se alegrar com a vitória do próximo que reside a chave de uma comunidade mais justa e humana.

Sejamos, pois, uma sociedade nova, capaz de resgatar o amor e banir o ódio.
Só assim transformaremos a prisão em horizonte e a queda da andorinha num voo colectivo de esperança.

Obrigado. Deus abençoe.”

E, de repente, todos os que acompanhavam de perto, inclusive eu, lá no alto da montanha, respondemos em coro:

“Obrigado. Deus abençoe.”

Parecia ensaiado, mas foi puro, espontâneo e profundamente humano.

Do alto da montanha, compreendi que o verdadeiro discurso não vem de púlpitos, mas da vida vivida com integridade e que, talvez, o mestre que esperava ouvir sempre esteve dentro de mim  e de cada um de nós.

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