ÁFRICA QUE ESPERO DEIXAR

Era uma tarde de sexta-feira. O frio entrava pelas paredes mudas, enquanto lá fora, as viaturas seguiam apressadas, como se fugissem de algo que nós, cá dentro, fingimos não ver. Fechei os olhos e parti, não com um passaporte, mas com o pensamento. Voei para dentro de África, lá, onde nasci e cresci… 

ÁFRICA QUE ESPERO DEIXAR

Estas palavras brotam do pó vermelho que me suja os pés e do sol que me beija a testa. Brotam do batuque que pulsa nas veias do meu povo e da esperança teimosa que ainda vive nos olhos de quem perdeu quase tudo.

Lembro-me de um poema antigo que escrevi sobre África. Era um murmúrio de fé, um punhado de sementes lançadas ao chão seco, na esperança de que um dia chova. Hoje, volto a esse poema e  vejo que África continua a ser um berço de sorrisos teimosos, sim, mas também um chão onde germinam desigualdades brutais.

Aqui, crianças morrem com fome nos ossos e febre no olhar. Em muitos territórios, a escola está doente e o hospital está à espera de socorro.

Em muitos dos nossos países, o ensino está a desabar e esquecem-se: quem hoje é negado ao saber, será amanhã quem ensina. Ensinará o quê?

Por cá, há quem se dedique mais a derrubar o outro do que a levantar a sociedade. Precisamos de caminhar juntos, com fé, com foco, com frontalidade, porque quem pensa diferente não é inimigo: é espelho, é  alavanca, é alerta!

Ainda há quem aplauda o punho invisível da destruição, movido pela ganância, alimentado pelo desprezo à pátria e no meio desse teatro, o verdadeiro patriota, esse, luta com garras e alma. Defende o bem comum, mesmo quando isso lhe custa o sono.

Deixo uma saudação sentida a todos os meus irmãos e irmãs que, incansavelmente, não medem esforços para tornar este território num lugar melhor.

Aos que preservam os nossos valores, aos que sustentam com coragem aquilo que conquistámos com lágrimas, sacrifício e empenho colectivo, aos que acreditam que o amanhã se constrói com as mãos firmes de hoje, a minha mais profunda gratidão.

Um abraço apertado a todos os que estendem a mão, não para pedir, mas para levantar o outro; a todos os que caminham em direcção ao progresso, não apenas o próprio, mas o do próximo.

Vocês são a esperança viva de uma África mais nossa, mais humana, mais inteira.

Caro leitor, eu sonho com uma África onde o poder se exerce com limite e a oposição saiba o seu verdadeiro papel.

Quero uma África mais nossa, mais digna, mais capaz, que transforme o seu ouro, o seu petróleo, os seus diamantes e que transforme, sobretudo, as suas gentes. Uma África que não exporte cérebros, mas os ponha a brilhar aqui mesmo, em casa.

Não a paz das conferências, dos cocktails e das selfies com dísticos, mas que tenhamos a paz que se sente na lavra, na escola, no hospital e na esquina onde se vende ginguba. Sim, quero deixar uma África melhor do que esta.

Seremos melhores quando deixarmos de nos preocupar tanto com discursos que levantam plateias, mas que, no fim, estão vazios de conteúdo e passarmos, enfim, a agir melhor. Quando as políticas públicas deixarem de ser meros relatórios em papel e passarem a ser pão sobre a mesa, remédio na prateleira e chão firme debaixo dos pés.É este o meu sonho.

Esta é a missão: deixar uma África mais justa do que a que herdámos, uma África onde os filhos e filhas da terra possam viver com orgulho, com dignidade, e com sonhos à altura da sua humanidade.

Quero uma África de irmãos, onde a vitória seja colectiva, e não troféu de meia dúzia.

Quero uma África onde uma criança possa sonhar sem pedir licença, onde o futuro não seja adiado para sempre, onde já não seja preciso escrever estas palavras.

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