NO AZUL E BRANCO ECOA A REVOLTA DO SALÁRIO E DOS CARGOS
Entre sacudidelas e buzinas, dois trabalhadores trocavam palavras amargas sobre salários e promoções.

Não sabiam, mas estavam a dar uma aula de sociologia em movimento e eu, mero passageiro, tornei-me aluno atento.
Luanda fervia lá fora. Lá dentro, no táxi, fervia outra coisa: a revolta.
O motor gemia, os bancos choravam ferrugem, mas ali dentro fervilhava o mais honesto dos parlamentos.
Ali, onde não há crachás nem cargos, fala-se sem filtros, sem medo. Alguns com o estômago vazio e coração cheio.
Neste dia, o veículo era “Azul e Branco” por fora, mas por dentro carregava as cores gastas de quem transportava o país às costas e ali, no banco do fundo, entre vozes baixinhas e olhares fundos, escutei a revolta dos que trabalham, mas não sobem e nem vêem o dinheiro, esse papel com foto, a crescer no bolso.
As lamúrias que ouvia, crescia ao longo da caminhada.
Era conversa crua, entre dois homens cansados de esperar pela justiça que nunca desce na paragem certa.
Nestes transportes colectivos, não há silêncio que resista. É ali, entre cotovelos colados e olhares cansados, que se ouve o país cru, sem edição nem pose. Às vezes, é só o cobrador a anunciar a próxima paragem. Outras vezes, é um desabafo que vale mais do que mil relatórios de recursos humanos. Sorri, sem querer.
Naquele dia, sentei-me no último banco, esse púlpito dos invisíveis, local, onde é possível ver quem sobe e desce. À minha frente, dois senhores trocavam palavras amargas sobre salários e cargos, como quem remexe uma ferida ainda fresca. Falavam baixo, mas com o tom de quem já gritou demais por dentro. Ali, ouvia o desabafo de dois amigos cansados do que testemunham no seu local de labuta.
“Nesta empresa escolhem-se entre eles”, dizia um.
“Estou há mais tempo e ganho menos do que quem acabou de chegar”.
“Até o colega António, que era adjunto, continua no mesmo sítio enquanto outros vão subindo”.
Não era inveja, parecia mais cansaço. Um desalento partilhado, como se já tivessem engolido muitas promessas a seco.
Epá, aproveitei para refrescar a memória com uma garrafa de água, a memória estava quente de tanto armazenar o conteúdo daquele debate espontâneo promovido por dois cidadãos insatisfeitos.
No banco da frente, outra voz intrometeu-se:
"Aqui não se sobe por mérito, sobe-se por cunha, almoço e culto a personalidade. Se souberes dizer 'Sim, senhor chefe' com convicção, estás promovido!". Ri-me. Não da piada, mas do reconhecimento.
Olhei pela janela. A cidade seguia o seu ritmo de sempre: sem pressa para corrigir injustiças, mas veloz na arte de repeti-las.
Quis interromper, meter a colher no caldo, mas contive-me. Limitei-me a escutar, como fazem os que sabem que, às vezes, o melhor comentário é o silêncio atento.
Ambos desceram antes do término. Levaram consigo o desabafo, deixaram-me com a reflexão. Afinal, têm razão? Onde mora a justiça neste tabuleiro laboral?
É legítima a revolta de quem está há mais tempo e vê outros ultrapassarem-nos na corrida? Sim. Mas também é verdade que tempo de casa não é, por si só, sinónimo de competência. Ser o mais antigo não garante medalhas nem cargos, sobretudo quando o mercado exige mais do que fidelidade: exige reinvenção, resultados, visão...
Vivemos tempos em que os salários são negociados como contratos de futebol. Quem traz algo raro ou necessário, ganha mais. Simples. Injusto? Talvez. Mas real. Sim!
Dou um exemplo: um clube precisa de um treinador para disputar competições internacionais. Tem três técnicos da casa, todos com nível B. O regulamento exige nível A. A direcção vai buscar um de fora, com o perfil exigido. O salário será, naturalmente, superior. A escolha não recai sobre o mais antigo, mas sobre o mais adequado.
Volto ao táxi. Os meus irmãos de estrada questionavam-se:
“E a valorização do esforço? E o reconhecimento?”
A resposta, infelizmente, nem sempre vem com selo de justiça. A meritocracia, esse conceito bonito, muitas vezes tropeça nos bastidores das relações humanas, na política de escritório ou na simples falta de critérios claros.
Mas também há outro lado: o da auto-superação. Quantos de nós paramos para pensar o que mais posso aprender? Como posso ser melhor do que ontem?
A formação contínua, a pontualidade, a empatia, a disposição para ouvir e colaborar, tudo isso pesa. Ou devia pesar. Não se esqueça deste detalhe mínimo.
A verdade, caro leitor, é que entre o adjunto esquecido e o recém-chegado promovido, existe um mundo de factores invisíveis:
Nem todos justos.
Nem todos claros.
Mas todos reais.
No fim, talvez o mais sábio seja continuar a lutar, com trabalho, com estudo, com ética, mas sem esquecer que, muitas vezes, o reconhecimento não vem no tempo que queremos, nem da forma que merecemos.
Ainda assim, sigamos, porque, como naquele táxi azul e branco, a viagem continua e há sempre uma próxima paragem, porque, por mais longa que seja a viagem, todos esperamos, um dia, ser vistos no retrovisor da justiça.
Boa viagem!