NO CONSULTÓRIO DA CONSCIÊNCIA: UMA SALA, TRÊS PESSOAS E UM PRINCÍPIO
A equipa do Ponto de Situação deslocou-se a um consultório médico, na zona da fábrica de Blocos, na Vila do Gamek, em Luanda, fazendo-se passar por um casal jovem em busca de um profissional disposto a realizar a interrupção de uma gravidez. O objectivo era claro: testar a integridade ética dos profissionais de saúde, mas o desfecho foi inesperado.

Era 22 de Abril de 2025. Meio-dia exacto. O sol abrasava. A rua, pouco movimentada. Caminhávamos para cumprir o plano traçado, misto de jornalismo investigativo e responsabilidade social.
Avistámos um consultório médico discreto. Aproximámo-nos com cautela, alinhando os últimos detalhes da encenação. Batemos à porta: silêncio. Um jovem numa motorizada, parado em frente ao edifício, disse-nos: “É só entrar.” E assim o fizemos, reforçando mentalmente a nossa personagem.
No interior, um ambiente calmo, quase deserto. Encontrámos o médico trajado de bata branca, em conversa com um senhor. Saudámos. Depois da troca de palavras, pedimos que a conversa se fizesse numa sala reservada. Pedido aceite.
Já a sós, o médico apresentou-se( nome omitido por questões de ética) e quis saber o que nos levava ali. A nossa resposta foi ensaiada: éramos um casal de namorados e a relação resultara numa gravidez indesejada. Não estávamos preparados para ser pais. Procurávamos, pois, uma solução para interromper a gestação.
O médico, homem de idade, sorriu de forma tranquila. Depois, com firmeza, disse:
“Neste centro não fazemos esse tipo de procedimento. É crime. Não aconselho ninguém a fazê-lo. Os riscos são muitos e podem levar à morte.”
Aconselhou-nos como um pai que orienta os filhos:
“Vocês são muito novos. Se houve descuido, foi porque Deus assim quis. É uma situação difícil, mas não é razão para seguir esse caminho.”
Justificámos, com falas treinadas, que a vida estava difícil e que uma criança nos impediria de alcançar certos projectos. O médico insistiu: a vida nunca foi fácil para ninguém e nem por isso se deve recorrer ao aborto.
Partilhou uma história recente: uma mulher quis interromper a gravidez porque o marido não aceitava mais filhos. Ele, como agora, desaconselhou a decisão. “O filho é uma dádiva”, disse-nos, com voz serena e convicta.
Sentíamo-nos como actores a ouvir um guião moral inesperado. Silenciámo-nos, cabisbaixos, a tentar perceber como inverter a maré. O médico continuava imperturbável.
“Há muitas formas de evitar a gravidez indesejada: preservativos, pílulas, adesivos, injecções, dispositivos intra-uterinos, coito interrompido… ou até a abstinência, no caso de quem apenas namora.”
Insistimos que queríamos avançar com o aborto. Ele apenas abanou a cabeça, em sinal de desalento, e concluiu:
“Vão para casa e reflitam bem sobre esta decisão.”
Agradecemos, despedimo-nos e saímos com passos lentos, rostos tristes — ainda no papel. Mas, mal deixámos o perímetro, libertámos uma gargalhada de alívio e, sobretudo, de respeito. O médico resistiu à isca e mostrou-se um verdadeiro profissional. Em tempos sombrios, em que a vida humana nem sempre pesa, encontrar pessoas assim é um alento.
O outro lado da história
Importa recordar que recentemente, um alegado enfermeiro foi considerado culpado pela morte de uma cidadã em Luanda, após uma tentativa de aborto clandestino.
O homem, de 62 anos, é acusado de exercício ilegal da profissão e de realizar interrupções de gravidez em condições inseguras. Desta vez, no bairro Rocha Pinto, município da Maianga, tentou mais um procedimento que resultou na morte de uma jovem de 36 anos, no passado dia 13 de Março. A vítima faleceu 15 dias depois.
Segundo investigações, o “profissional” realizava estes actos na sua residência, onde já terá ocorrido outro óbito, há dois anos, em circunstâncias semelhantes.
Casos como estes têm-se tornado frequentes em Angola, reflexo da falta de acesso à educação sexual, de políticas públicas de saúde reprodutiva eficazes e, sobretudo, da ausência de acolhimento social às mulheres em situação de vulnerabilidade.