LUANDA: ENTRE A ESPERANÇA E O ECO DAS SIRENES

A cidade amanheceu com um ar estranho, meio esperança, meio dúvida, como quem sorri a chorar. Desde segunda-feira, 28 de Julho, que Luanda já não prega olho da mesma forma e desde terça, a capital dorme com um olho aberto e outro a escutar sirenes. Há quem diga que até o cacimbo anda desconfiado.

O clima está tenso. Caminhar tornou-se um exercício de vigilância. As sirenes são agora trilha sonora urbana, os disparos, batidas de fundo e as notícias de vandalismo e pilhagem, essas, repetem-se como em novelas, que apresentam os mesmos actores e enredos cada vez mais sombrios.

Os profissionais do volante, nossos incansáveis pilotos da sobrevivência diária, decidiram parar por três dias. Largaram o volante e ficaram em casa, num protesto mudo mas sonoro, contra o aumento do litro do gasóleo e pela dignidade que dizem ser esquecida.

A frase clássica do táxi:

“Mais velho, emagrece ainda um pouco, pois vai subir um paxi”, silenciou-se e curiosamente, sentimos-lhe a falta.

Quando pensávamos que o maior desafio seria atravessar Luanda a pé, de mototáxi ou de autocarro, eis que surgem populares a vandalizar e saquear com a raiva de quem não tem mais fé no fim do túnel, talvez porque o túnel nunca foi iluminado.

O filme repete-se, muda apenas o cenário. Depois de Luanda, Benguela, Huambo e Icolo e Bengo, agora, é Malanje a piscar os olhos de alerta, como quem olha para a capital e diz:

"Já agora, passa-me também esse guião de tragédia, vandalismo e pilhagem..."

Cada cena desses dias deixa-me com o pensamento martelado, como se cada notícia fosse um tambor a rufar perguntas, muitas com respostas imediatas e outras que exigem um diagnóstico profundo, num encontro com diversos actores, com ou sem kissangua, mas o essencial é a solução!

São Silvestre chegou mais cedo este ano, toda a gente a correr, mas sem medalha no fim.

Na manhã de quarta-feira, 30 de Julho, optei por sair à rua, espreitar o estado da cidade com os próprios olhos. (Olhos de ver, como dizem na banda).

 Ao abrir a porta de casa, vi poucas viaturas. O trânsito estava entregue às pernas, motores humanos a roncar como se fossem motorizadas com alma.

Olhos vivos, ouvidos atentos, pés prontos. O percurso estava traçado. Notei mais gente nas ruas, mototaxistas a circular, ainda que em menor número, mas a faturar, como quem diz “não há crise que me derrube”.

“Mana, as coisas estão a ficar cada vez mais caras. O óleo acabou no Sené, nem açúcar tem. Estamos mal.”

Ouvi isto de uma senhora que conversava com a vizinha, voz embargada de preocupação e,  eu, cronista à escuta, gravei a frase na memória como se fosse manchete.

Os passos nas ruas são desiguais, uns largos, outros miudinhos, mas todos cheios da esperança de um dia diferente.

Na Avenida 21 de Janeiro, vi gente a vender banana com ginguba, bombó a fazer resistência no asfalto, e alguns estabelecimentos abertos. Poucos, mas firmes.

A polícia, por sua vez, multiplicava-se em cada esquina, para manter a ordem e tranquilidade na banda.

Paragens às moscas, tão vazias que custava acreditar ser esta a nossa Luanda fervilhante. Ainda assim, por lá encontrei quem mantinha viva a esperança de apanhar um táxi. Uns mexiam no telemóvel, outros cruzavam os braços, e havia também quem agitava as pernas num vaivém nervoso, como quem já está farto de esperar. Deixei-os ali, entregues à espera, enquanto seguia caminho, a ganhar resistência física para, em breve, acelerar o passo.

As conversas, essas, não mudavam de tom: pilhagem, paralisação dos táxis, destruição de veículos e o eterno suspense, quando é que voltaremos ao “normal”? Seja lá o que isso for...

Vi padarias abertas, pais com sacos cheios, crianças a sorrir: pão no matabicho, alegria no rosto, mas quem não tem dinheiro no bolso, vê-se às voltas com ATMs desligados e frases secas como o tempo.

“Operativo, tem dinheiro aí?”

“Não estás a ver que o ecrã está apagado?”

“Desculpe, a vista já não ajuda”, respondeu o homem!.

Cruzei-me com dois Hiace (os nossos "azul e branco") a circular de barriga vazia, só os motoristas a bordo. Pareciam ensaiar a marcha para o dia seguinte, como bailarinos em pré-estreia. 

Hoje, as pernas viraram viaturas. Quem tem sorte, encontra um mototáxi; quem tem mais sorte ainda, apanha um “turismo”. O resto caminha, em silêncio ou a cantar baixinho, como quem disfarça o medo.

Luanda parece uma cidade em pausa, mas com o coração a bater forte. Até as crianças imitam os adultos: passo largo, olhar atento, o destino na ponta do pé.

“Alô, como estão as coisas aí? Amanhã terá mesmo táxi?”

“É melhor ficares em casa. Evita problemas.”

Mas sempre há um que sai, corajoso ou imprudente, e depois serve de repórter improvisado:

 “Irmão, ali está calmo, mas ali mais à frente... esquece!”

A incerteza é o novo normal.

Não sabemos como será a quinta-feira, 31 de Julho, mas sabemos que há-de amanhecer e  cá estaremos, de olhos bem abertos, à espera da cidade a despertar de novo, de outra forma, quem sabe com esperança a sério.

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